Movimento que restringe acesso de crianças a hotéis e restaurantes gera polêmica
18/08/2017 O chamado de Child Free tem alcançado cada vez mais adeptos e revolta pais
RIO — Miguel Figueiredo, de 6 anos, já foi pajem de cinco casamentos, mas, no ano passado, foi proibido de ir a uma festa dessas: a restrição a crianças foi uma exigência da noiva, que não queria que nada atrapalhasse o divertimento dos adultos convidados para a comemoração.
Roberta Figueiredo foi impedida de levar o filho Miguel em um casamento: "As pessoas que não têm tanta afinidade com criança tendem a enxergá-las como uma forma de incômodo." - Arquivo Pessoal
— Quando ela entregou o convite, disse: "não quero criança no meu casamento". Achei surreal. Se eu fosse com meu filho, quem deixaria de curtir a festa seria eu, não ela — conta Roberta Figueiredo, que acabou deixando o menino em casa. — As pessoas que não têm tanta afinidade com criança tendem a enxergá-las como uma forma de incômodo. Mas as crianças são parte da sociedade, isso é um pouco de intolerância.
O caso não é incomum e relatos de situações semelhantes circulam frequentemente nas redes sociais com depoimentos de famílias que se sentem excluídas por não conseguirem entrar com os filhos em determinados estabelecimentos e eventos, além de passarem por constrangimentos envolvendo pessoas que preferem manter as crianças bem longe. Inicialmente, o movimento "ChildFree" ("livre de criança") surgiu para apoiar aqueles que não desejavam ter filhos e se sentiam alijados por isso, mas em pouco tempo adquiriu outras conotações e passou a agregar também indivíduos que não gostam de crianças.
Debora Oliveira, mãe de duas crianças, criticou placa exposta em restaurante de SP: A questão não é só o lugar aceitar crianças ou não, o problema é falar que odeia criança. Uma pessoa que odeia crianças, para mim, não passa de um lixo humano. - Arquivo Pessoal
O polêmico debate sobre a restrição de acesso dos pequenos a restaurantes, pousadas e albergues, entre outros locais, ganhou fôlego com uma publicação feita por Debora Oliveira no Facebook, no início do mês, questionando a foto de uma placa no restaurante Underdog, em São Paulo, na qual se lia "Aqui seu cão é bem vindo!!! Mas crianças favor amarrá-las ao poste." Mãe de dois filhos, Debora comentou no Instagram do estabelecimento pedindo explicações e foi recebida com hostilidade. Depois disso, publicou em sua rede social uma crítica à postura do estabelecimento que teve mais de 1.200 compartilhamentos. O restaurante, por sua vez, argumentou que os dizeres eram uma brincadeira e, em sucessivas publicações, ofendeu aqueles que criticavam a placa: "Ativistas, feministas, machistas, mãesistas, ‘istas em geral’ e salvadores da pátria (por internet) [...> preguem menos e façam mais amor em casa , que pelo visto está escasso."
— Particularmente, até acho normal que um estabelecimento não se sinta preparado para receber crianças, o que não acho normal é comunicarem isso como se a criança fosse um animal. A questão mais profunda disso tudo é a desvalorização da infância — defende Debora.
QUESTÃO DIVIDE OPINIÕES
De um lado familiares clamam por mais empatia e argumentam que a restrição aos filhos, em uma sociedade machista, acaba impedindo as mães de circularem nos espaços. De outro, algumas pessoas ponderam que, muitas vezes o comportamento "mal educado" de parte das crianças e a omissão de seus pais diante dessas condutas acabam sendo um estorvo em espaços públicos. Em publicações sobre o assunto, alguns usuários relatam, por exemplo, que muitas vezes escolhem a mesa no restaurante levando em consideração se há muitas crianças por perto.
Tatiana Neumann teve problemas para conseguir hospedagem que aceitasse sua filha Amanda: " Nas férias eu queria viajar com minha filha, tentei quatro pousadas em Cunha e descobri que é um local anticrianças. Decidi ir para Araras e também não consegui lugar, então fui para Itaipava. É super discriminatório. A sociedade não é acolhedora com as mães, especialmente as que são separadas" - Arquivo Pessoal
"É um reflexo da cultura brasileira em que os pais hoje não dão educação a seus filhos e acham que as pessoas ao redor são obrigadas a aguentar todo tipo de grosseria", escreveu um usuário no Facebook.
A questão divide opiniões até entre especialistas. Embora não seja ilegal restringir o acesso de acordo com a faixa etária, há argumentos de que a prática pode sim se converter em um ato discriminatório e um atentado às liberdades individuais asseguradas pela Constituição.
— Não se está tirando a liberdade da criança de ser criança. Não vejo essa restrição como ilegalidade. É uma utilização dentro da sua entidade particular do mesmo jeito que há estabelecimentos que não admitem menores de 18 anos, de 16 e de 12. A questão está no livre arbítrio de quem oferece o serviço — diz Silvana Moreira, presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-RJ, dizendo ainda que os pais devem garantir o bem-estar das crianças e evitar lugares onde elas não são bem-vindas.
Gabriella Serpa teve de alugar apartamento em BH após não conseguir hostel que aceitasse criança: " É uma sensação de exclusão do mundo. É revoltante. Uma criança não é um monstrinho, é uma pessoa" - Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Para Isabella Henriques, advogada do Instituto Alana, a restrição é discriminatória e evidencia uma questão ética grave:
— As garantias fundamentais dadas pela Constituição comportam restrições em alguns casos. Mas um restaurante que abre as portas na hora do almoço e por simples conveniência não permite a entrada de criança faz uma escolha . É como não querer idosos ali, porque são muito velhos. Se fosse assim, locais começariam a criar restrições para pessoas com deficiência, negros. Que sociedade é essa que quer colocar as crianças embaixo do tapete, porque não consegue aguentar um choro? — questiona.